quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Voilà


Eu era um pássaro. Eu sabia que era eu, mas eu via tudo por cima. Eu via tudo de longe, pelos olhos do pássaro, mas era eu. Eu voei durante horas, por que foi a melhor sensação que eu poderia ter experimentado em toda a minha vida de homem e de pássaro. Os lugares, as pessoas, pessoas e lugares são vida. Eu via a vida de cima, como Deus, por que ver tudo de cima tem uma beleza diferente, sagrada, e quanto mais alto, mais nos aprofundamos no sagrado. Num dos meus dias normais de pássaro eu vi minha família, meus pais, meu irmão, meus amigos, eu sabia que eram eles, vivendo sem mim, mas isso não me incomodava e a falta de incomodo me incomodou profundamente, mas pássaros não precisam de respostas, só precisam voar pra lá e pra cá, porque poder voar é mais do qualquer coisa, então não podemos reclamar, essa é a lei dos pássaros e eu aprendi isso depois de muito tempo nessa nova vida. Pássaros não se rendem e tem sono leve, vivemos com o medo constante e acho que todos já sabem de que. Durante uma manhã, não qualquer, pois cada manhã é diferente na vida de um pássaro, eu caí numa armadilha. Fui levado e engaiolado e eu tenho certeza que quase morri neste dia, por que meu coração era pequeno e o susto que tive quando vi o que vi foi tão grande que senti uma dor aguda que me fez cair na tigela de água. Entre as barras grossas da gaiola, estava o rosto da única mulher que amei quando era homem. Tivemos um romance intenso, cheio de carências que se destacavam mais que o amor e isso rendeu muito sofrimento para ambos. Até o dia que ela foi embora sem dar uma palavra, sem dizer adeus e sem dizer para onde e por que. Os homens precisam de respostas, pássaros não, só precisam voar. E justamente ela, havia me tirado aquele direito enquanto pássaro, como também me havia tirado o direito de amar enquanto homem. Para viver um homem precisa amar alguém e alguma coisa ao mesmo tempo, o que é bem mais complicado que voar quando se é pássaro, aprende-se rápido e com o tempo torna-se mecânico e só realmente entendemos o valor de poder voar quando somo aprisionados. Essa frase me soa tão humana e clichê. Será que eu poderia suportar, aceitar viver o resto dos meus dias daquela maneira, tendo água, comida e amor, mas sem poder voar. E mais uma vez essa frase me soa tão humana que eu preciso olhar para minhas patas e crer que ainda sou pássaro. Não importa quão grande seja sua gaiola, ou um viveiro enorme, é preciso ver as coisas de cima, do alto, saber que não há fim no horizonte e que ele é de todos que podem voar e ver as coisas do alto. Mas eu me sentia tão homem ainda. Ser pássaro é tão divino que eu não suportava o peso. Então, pela primeira vez nessa vida de pássaro eu desejei ser homem de novo. Desejei isso porque enquanto pássaro tocamos o divino muito rápido e isso assusta, mas enquanto homem eu posso descobri-lo aos poucos, e isso é extraordinário. Então eu entendi. O amor entre os homens é equivalente ao voo dos pássaros, mas não a mecânica e a aerodinâmica, é a possibilidade de voar, a sensação de voar, o olhar de cima, é o sagrado. Após meses, eu acordei do coma. Havia sofrido um acidente de carro e sobrevivi por um milagre. Quando abri os olhos, eu vi entre as barras grossas da cama do hospital, a mulher que eu tanto amei. Ela havia lido no jornal sobre o acidente e me procurado. Casei-me com ela alguns anos depois, quando eu já tinha condições e força suficiente para empurrar a minha própria cadeira de rodas.