Eu era um pássaro. Eu sabia que era eu, mas
eu via tudo por cima. Eu via tudo de longe, pelos olhos do pássaro, mas era eu.
Eu voei durante horas, por que foi a melhor sensação que eu poderia ter
experimentado em toda a minha vida de homem e de pássaro. Os lugares, as
pessoas, pessoas e lugares são vida. Eu via a vida de cima, como Deus, por que
ver tudo de cima tem uma beleza diferente, sagrada, e quanto mais alto, mais nos
aprofundamos no sagrado. Num dos meus dias normais de pássaro eu vi minha família,
meus pais, meu irmão, meus amigos, eu sabia que eram eles, vivendo sem mim, mas
isso não me incomodava e a falta de incomodo me incomodou profundamente, mas
pássaros não precisam de respostas, só precisam voar pra lá e pra cá, porque
poder voar é mais do qualquer coisa, então não podemos reclamar, essa é a lei
dos pássaros e eu aprendi isso depois de muito tempo nessa nova vida. Pássaros
não se rendem e tem sono leve, vivemos com o medo constante e acho que todos já
sabem de que. Durante uma manhã, não qualquer, pois cada manhã é diferente na
vida de um pássaro, eu caí numa armadilha. Fui levado e engaiolado e eu tenho
certeza que quase morri neste dia, por que meu coração era pequeno e o susto
que tive quando vi o que vi foi tão grande que senti uma dor aguda que me fez
cair na tigela de água. Entre as barras grossas da gaiola, estava o rosto da
única mulher que amei quando era homem. Tivemos um romance intenso, cheio de
carências que se destacavam mais que o amor e isso rendeu muito sofrimento para
ambos. Até o dia que ela foi embora sem dar uma palavra, sem dizer adeus e sem
dizer para onde e por que. Os homens precisam de respostas, pássaros não, só
precisam voar. E justamente ela, havia me tirado aquele direito enquanto
pássaro, como também me havia tirado o direito de amar enquanto homem. Para
viver um homem precisa amar alguém e alguma coisa ao mesmo tempo, o que é bem
mais complicado que voar quando se é pássaro, aprende-se rápido e com o tempo
torna-se mecânico e só realmente entendemos o valor de poder voar quando somo
aprisionados. Essa frase me soa tão humana e clichê. Será que eu poderia suportar, aceitar viver o resto dos meus dias daquela maneira, tendo
água, comida e amor, mas sem poder voar. E mais uma vez essa frase me soa tão
humana que eu preciso olhar para minhas patas e crer que ainda sou pássaro. Não
importa quão grande seja sua gaiola, ou um viveiro enorme, é preciso ver as
coisas de cima, do alto, saber que não há fim no horizonte e que ele é de todos
que podem voar e ver as coisas do alto. Mas eu me sentia tão homem ainda. Ser
pássaro é tão divino que eu não suportava o peso. Então, pela primeira vez
nessa vida de pássaro eu desejei ser homem de novo. Desejei isso porque
enquanto pássaro tocamos o divino muito rápido e isso assusta, mas enquanto
homem eu posso descobri-lo aos poucos, e isso é extraordinário. Então eu
entendi. O amor entre os homens é equivalente ao voo dos pássaros, mas não a mecânica
e a aerodinâmica, é a possibilidade de voar, a sensação de voar, o olhar de
cima, é o sagrado. Após meses, eu acordei do coma. Havia sofrido um acidente de carro e sobrevivi por um milagre. Quando abri os olhos, eu vi entre as barras grossas da cama do hospital, a mulher que eu tanto amei. Ela havia lido no jornal sobre o acidente e me procurado. Casei-me com ela alguns anos depois, quando eu já tinha condições e força suficiente para empurrar a minha própria cadeira de rodas.
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